29 de janeiro de 2006

O tradutor e o ator

Numa mesa-redonda sobre a intervenção na tradução, realizada na PUC-Rio no fim de 2005, alguém do público levantou uma comparação entre o tradutor e o ator (infelizmente não tenho como dar o crédito, pois não sei quem fez essa colocação). Debateu-se brevemente essa metáfora e agora gostaria de elaborar um pouco sobre ela.

Há uma ou duas décadas vem se discutindo mais intensamente a participação do tradutor na criação do texto traduzido e pensando sob diversas visões quem é esse sujeito. Por um lado, ele é único: tem uma história pessoal, formação, raciocício e estilo que não podem ser iguais aos de mais ninguém. Por outro, não pode ser tão único assim, pois está inserido na sociedade e a leitura que faz dos textos, a visão que tem do seu trabalho, aquilo que considera uma boa tradução, o cliente e o público a que quer agradar partilham de um mesmo contexto coletivo. Portanto, ele não é nem um receptáculo oco que simplesmente processa um texto, transformando-o de uma língua para outra sem nenhum tipo de intervenção pessoal, nem é um autor no sentido tradicional, criador absoluto do texto traduzido.

Corta para pensarmos um pouco sobre os atores. Um ator precisa saber incorporar o personagem que representa, mas é claro que não tem como se desvestir de si próprio. Ainda assim, quem o assiste precisa, em parte, esquecer o ator e ver o personagem. Em parte. Há atores extremamente versáteis e que são admirados pela diversidade de seus papéis. Já outros ficam mais marcados e fazem papéis muito semelhantes, mas podem conquistar admiração justamente por quem aprecia o gênero em que se especializam ou sua forma marcante de atuar. Dentre esses dois tipos de atores (caracterizados de forma bem simplificada), haveria algum necessariamente melhor? O Russell Crowe, que foi gladiador superbombado, capitão de navio do século XIX, informante à beira de um ataque de nervos e matemático brilhante e esquizofrênico, é por isso melhor que o Jack Nicholson, que independentemente do personagem é sobretudo Jack Nicholson, despenteado, explosivo e sempre no limite da insanidade? Pensando de outra forma: o Hamlet na pele do Kenneth Branagh é melhor do que interpretado pelo Mel Gibson? Por quê? Porque é o Kenneth Branagh? Mas então onde entra o Hamlet? Se Mel Gibson não convence como Hamlet, por que é isso? O que nós preferimos é o estilo de cada um dos atores ou será que de alguma forma um deles reflete mais do que outro o personagem que esperamos encontrar?

Voltemos aos tradutores. A esmagadora maioria é anônima e mantém o mundo girando traduzindo com eficiência todo tipo de documento fundamental para o funcionamento das nossas sociedades. Mas cada um deixa sua impressão digital e, em campos mais restritos, em geral artísticos, alguns tradutores podem ganhar destaque e nesses casos é comum se tentar justificar por que eles são particularmente talentosos. Hoje em dia é de praxe criticar, às vezes até com revolta exagerada, as traduções seminais do Monteiro Lobato, que transformava o original num texto de sua autoria cortando partes, recriando personagens, reescrevendo passagens que não combinavam com suas preferências pessoais. Ele corresponderia ao ator que não deixa o personagem falar. No outro extremo, vários tradutores de renome dizem em prefácios ou entrevistas que se abstêm de interferir, que transmitem com total transparência as palavras do autor sem nenhuma distorção -- e viram motivo de chacota principalmente nos círculos acadêmicos, pois seria como um ator dizer que deixou de ser si próprio enquanto estava representando um personagem. Ainda assim, em ambos os pólos há tradutores extremamente bem-sucedidos e admirados. Quem foi que disse, falando sério, que é o "cavalo" do autor? O nome me escapa, mas foi alguém que é tido como um modelo de tradutor. Por outro lado, também é comum ouvirmos a falácia de que os melhores tradutores literários são os escritores, que não raro deixam seu lado autoral dominar a tarefa de tradução e, se forem escritores consagrados, provavelmente serão elogiados por isso.

De modo geral, contudo, pareceria que a solução que agrada à maioria é um meio-termo bastante flexível mas que não penda demais para um dos extremos. Qual é esse ponto de equilíbrio resta a cada um encontrar, em função dos nossos sucessos e insucessos no mercado. E quem sabe uma oficina de teatro não nos traria insights interessantes?

Enquanto isso, acabo de encomendar Who Translates, de Douglas Robinson, que parece apresentar uma série de visões não muito convencionais sobre esse sujeito enigmático que é o tradutor. Provavelmente ele vai embaralhar minha cabeça mais do que esclarecer dúvidas -- mas, pensando bem, acho que é por isso mesmo que quero lê-lo. Quando o fizer, posto aqui minhas observações.

4 comentários:

Anônimo disse...

Será que quando a gente faz uma determinada escolha das palavras que usa na tradução (escolha entre várias possibilidades que o léxico nos oferece), está de certa forma tentando "colocar palavras" na boca do autor, ou seja, tentando interpretar como aquele autor específico diria tal e tal coisa em português (ou na língua para a qual estamos vertendo o texto)? Não me parece que esse seja o papel do tradutor, mas deve ser a má escolha das palavras que faz com que um texto traduzido (ou vertido) deixe de parecer "natural"...
Para nós, tradutores exclusivamente técnicos, essa discussão é fascinante, tanto mais quando se sabe que o tradutor técnico tem que buscar o termo exato na outra língua e não o mais adequado do ponto de vista semântico...

Carolina Alfaro de Carvalho disse...

Oi, Carla.

Concordo que a má escolha faz o texto não parecer natural, mas não entendo por que você acha que não é papel do tradutor interpretar o texto e escolher, às vezes dentre várias opções possíveis, as palavras nas quais imaginamos que o autor daquele texto se expressa em outra língua. Isso acontece mesmo em textos técnicos. Um termo técnico pode ser relativamente unívoco, mas sempre há mil maneiras de reescrever cada frase, que pode adquirir nuances diferentes a cada reescrita. Até porque, por exemplo, os advogados ingleses se expressam de uma forma muito diferente dos brasileiros (se pensarmos na estrutura das línguas) e é necessário fazer vários ajustes. O mesmo valeria para médicos ou engenheiros. Não me refiro só à terminologia técnica, mas a todas as palavras de uso não tão restrito e ao sentido mais amplo transmitido pelo texto. Quer dizer, mesmo nas áreas técnicas, a metáfora do ator continua valendo e trazendo a mesma polêmica, você não acha?

Anônimo disse...

Com base no que o Danilo me respondeu num comentário sobre ler ou não os livros no original, tive a impressão de que ele, por exmplo, não concorda muto com o seu ponto de vista. Veja lá: eu gosto mais de ler (literatura em geral) as obras em (bom) português e não em alemão ou inglês. Comentei sobre um livro que estou lendo e que achei muito bem traduzido e ele me respondeu que não necessariamente o texto corresponderia ao original. Para mim, isso não é o que eu penso de uma boa tradução, que o texto tenha sido "reinterpretado" pelo tradutor... Talvez esta discussão entre os teóricos da tradução fuja ao alcance de quem fez Letras e não Tradução, porque para nós, interpretação de texto é função do crítico literário e não do tradutor. Mas entendo quando você diz que numa tradução técnica a escolha da frase é importante (mas não dos termos técnicos em si, que ou estão, ou não estão, corretos), especialmente em textos jurídicos (uma das minhas especialidades). Adorei a discussão, mas não pretendo polemizar. Como diz o Danilo em outro tópico, "muita gente entra aqui só de bicão, pra manter uma conversa com os outros". Talvez seja o meu caso, para acompanhar o campo em que me aposentei, mas pelo qual continuo apaixonada!

Carolina Alfaro de Carvalho disse...

Carla,
Aqui não tem bicão nem não bicão. Quem tiver uma opinião está mais do que convidado a expressá-la.
Aliás, será que o Danilo vai dar as graças por aqui? Seria legal.
Quanto à questão da interpretação, na minha opinião não dá para fugir: o tradutor é em primeiro lugar um leitor, e todo leitor interpreta o texto que lê (essa "interpretação" é num sentido um tanto quanto estrito, isto é, uma atividade essencial a qualquer ato de leitura/compreensão de um discurso, responsável por "transformar" aquela seqüência de palavras em uma série de significados, imagens, referências, etc.). No meu entender, depois da interpretação viriam outras atividades possíveis, como a crítica, as outras etapas da tradução, etc. Acho que estamos apenas definindo "interpretação" de uma forma diferente - talvez eu esteja usando essa palavra da forma tipicamente usada por estudiosos de teoria literária e tradução.
Mas olha, eu sou super "opiniuda". Não se acanhe não: se quiser discordar, discorde à vontade!