15 de janeiro de 2009

"QI"

"Dá para entrar nesse mercado ou tem que ter QI?"

É uma pergunta recorrente.

E capciosa, pois esse "QI" sempre vem com uma carga muito negativa. Não é raro que quem desconfie do tal "QI" também se refira a "máfia" ou "panelinha". Como se ser indicado por alguém fosse algo meio ilícito.

Talvez até seja, dependendo do contexto -- alguém ser aprovado em um concurso público sem passar na prova, por exemplo.

Mas no ramo da tradução, profissão livre e desregulamentada, em condições mais ou menos normais, conseguir serviços através de indicações é corriqueiro e não vejo nada de errado nisso.

Basta pensar em alguma vez em que você precisou pintar a casa, consertar o computador ou contratar um advogado. Você abriu os classificados e escolheu o primeiro que viu ou pediu uma indicação a algum conhecido? Saber que outra pessoa teve uma experiência positiva com aquele profissional faz uma enorme diferença.

Não é diferente com tradução. A pessoa tem um texto ou filme para traduzir, vai pagar caro pelo serviço e precisa daquilo bem feito. Existem mil maneiras de encontrar tradutores por aí, e pode até ser que o cliente receba mil currículos. Mas, se outra pessoa que ele conhece disser, de boa fé: "Conheço esse daí, já trabalhei com ele e gostei", mesmo que seja um currículo mediano a pessoa tem muito mais chances de ser a escolhida.

Por isso mesmo, dar uma indicação também implica responsabilidade.

Uma vez um amigo me perguntou sobre a diarista que eu tinha, pois ele estava atrás de uma. Queria alguém de confiança. Eu disse que a minha era eficiente e de total confiança, embora fosse meio mão pesada. Ele a contratou. Um mês depois me disse, numa boa, que a mulher tinha quebrado todos os copos de vidro da casa dele. Eu não sabia onde me enfiar!

Quando recomendamos alguém, estamos dando nosso aval, o que indiretamente fala sobre o nosso padrão de qualidade. É por isso que costumamos pedir recomendações para aqueles que achamos que sabem avaliar bem aquele serviço, aqueles em quem confiamos.

Para o tradutor iniciante, não é fácil conseguir indicações -- o que é natural, já que ele tem pouca experiência e portanto interagiu com pouca gente. Mas não são só clientes felizes que nos indicam. Colegas que conheçam nossa capacidade também. Essa é uma das vantagens (além das outras, mais óbvias) de se fazer cursos de tradução: os colegas e tradutores conhecem seu desempenho e, se este for alto, se lembrarão de você.

Esse é o tal "networking", que soa muito mais bonito do que "QI". Mas eu não vejo muita diferença. Para ter "I", é preciso ter "Q" -- é preciso conhecer gente. Quanto mais gente souber que você é um tradutor competente, ou dedicado, ou esforçado, mais indicações surgirão. Sem investir em contatos e parcerias, realmente fica difícil.

Outro detalhe é que indicação se ganha, mas não se pede. É extremamente constrangedor receber de alguém o pedido de recomendá-lo. Além da responsabilidade ser muito grande, a indicação normalmente é feita atendendo ao pedido de quem está procurando um profissional, e não o contrário. Assim: se um cliente me pedir uma recomendação de um tradutor de italiano, eu vou pensar nos tradutores de italiano que conheço e recomendar algum. Já se um amigo ou colega me disser "Eu traduzo italiano; você pode me recomendar para aquele seu cliente?" a história muda totalmente.

Eu dou cursos e muitas vezes recomendei alunos. Mas é preciso uma combinação de circunstâncias: cliente precisando de alguém, não exigindo que seja alguém com muita experiência e o aluno se encaixando bem naquele perfil. Aliás, perfil é muito mais do que saber traduzir. É preciso ter perfil de profissional -- saber se comunicar com o cliente, saber negociar, lidar bem com os prazos... Há mil pontos onde alguém pode pisar na bola.

Mas sentimos uma satisfação enorme quando uma recomendação nossa dá certo. A pessoa recomendada fica feliz, o cliente fica feliz, ambos confiam ainda mais no nosso padrão de qualidade e todos estreitam os laços da lealdade.

Boas parcerias geram bom QI para todos.

4 comentários:

Unknown disse...

Olá! Mais um ótimo artigo!
Estava lendo outro site sobre legendas e lá eles dizem que alguns legendadores não querem dar entrevistas porque não querem passar um ar triste na entrevista. Isso porque eles ganham muito mal. Tão mal, que tem até dificuldade para sustentar suas famílias.
É essa realmente a realidade dessa profissão??!?!?!?!?!?
Fiquei super assustada, porque nunca achei que pagariam uma fortuna, mas desse jeito também não.

Carolina Alfaro de Carvalho disse...

Vou falar sobre isso logo logo.

Mas vou logo dizendo que também achei essa declaração um exagero.

Até mais.

Andréa disse...

Olá Carol,
eu sou estudante de Ciência da Computação na Federal de Goiás e estou pensando em largar e fazer Letras-Tradução na UnB. Mas antes de tomar uma atitude tão drástica, pensei em falar com alguém que trabalha nesse ramo sobre a profissão para evitar arrependimentos! Será que você pode me falar como é o trabalho de tradutor? Meu e-mail é andrealmeneses@hotmail.com

Obrigada. Andréa.

Anônimo disse...

Não devemos esquecer que essa "rede de contatos" acaba sendo, em boa parte, o resultado de fatores arbitrários como ter nascido em determinada família, condição social, econômica, de ter cursado determinado colégio, etc.
Fatores sobre os quais o indivíduo não tem nenhuma influência.
Nem devemos esquecer que existem as indicações das indicações.
O pior da panelinha é a ideologia que sustenta que ela é moralmente neutra.