19 de agosto de 2006

Serviços e desserviços

Quando se discute tradução na mídia, com freqüência o resultado é duvidoso - principalmente para os tradutores profissionais.

Um exemplo de um enorme desserviço a quem adotou a tradução como profissão e luta pela sua qualidade e valorização é a matéria publicada no Jornal do Brasil no dia 8 de agosto, a partir da divulgação dos 10 finalistas do Prêmio Jabuti, na categoria Tradução. A manchete, "Tradução traz prestígio mas é mal remunerada", traz uma falsa esperança de defesa do profissionalismo responsável, mas o conteúdo revela exatamente o contrário.

Dois dos tradutores indicados ao prêmio que foram entrevistados para essa matéria, Bernardina da Silveira Pinheiro e Mamede Mustafa Jarouche, são exemplos "de um grupo de tradutores cada vez mais procurado pelas editoras: o dos especialistas vindos das universidades, que traduzem diretamente do idioma de origem da obra e valorizam mais uma boa publicação do que a remuneração." (grifo meu) Ora, por que serão tão procurados? Jarouche responde: "Como não preciso da tradução para viver [por ser professor universitário], meu interesse é por uma boa edição do trabalho". É claro que, se eu fosse editora, não pensaria duas vezes em quem contratar. Até porque afirmações como essa transmitem nas entrelinhas que quem vive de tradução não teria a menor preocupação com a qualidade.

Rubens Figueiredo sai em defesa dos profissionais desqualificando elegantemente os tradutores vindos da academia: "Não é por serem doutores que as traduções superam as de outros profissionais." Mas a questão não é ser ou não ser doutor, e sim servir ou não ao vil metal. Ao menos no texto desta reportagem, a breve opinião de Figueiredo quase desaparece ao lado do relato das peripécias intelectuais dos outros dois tradutores e das justificativas dos editores para cortar custos a qualquer custo, inclusive a clássica "Já aconteceu muito de mandar traduzir um livro duas vezes", como se a responsabilidade por um tiro n'água não fosse, em grande parte, de quem contrata o serviço.

Realmente dá tristeza constatar a propagação de preconceitos reforçada pela troca pública de alfinetadas entre acadêmicos e profissionais, ambos com egos igualmente inchados. Estudo não é necessariamente sinônimo de arrogância, assim como ganhar dinheiro não depõe contra a erudição e o cuidado com o texto. O único alívio é ver que pelo menos as nobres traduções de nobres autores está em mãos de quem, de uma forma ou de outra, dedica a vida ao estudo das línguas, e não mais de aristocratas, diplomatas ou eruditos aleatórios.

Muito mais alegria me trouxe a entrevista com Millôr Fernandes publicada na revista Língua Portuguesa de agosto de 2005 (aliás, todo número dessa revista traz alguma reportagem sobre tradução. Infelizmente, nenhuma delas fica disponível online).

Não que Millôr não seja controverso, e também desdenha a academia. Mas é modesto e espontâneo, e com isso diz umas poucas e boas que pelo menos dão margem a discussões frutíferas. Perguntado sobre como começou a fazer tradução, diz: "Aprendi a fazer tradução porque me encomendaram e foi assim desde então. (...) Sempre fui movido por forças exógenas, exteriores. O primeiro livro que traduzi foi Dragon Seed, de Pearl S. Buck, em 1942. Nunca me senti tão roubado na vida, você traduz 300 páginas por uma mixaria."

Pena que a entrevista não é sobre tradução e a conversa toma outros rumos, mas depreendemos daí que, se ele aceitou traduzir vários outros livros, é porque foi bem remunerado. E, mesmo sendo bem remunerado, fez um ótimo trabalho e se preocupou com a qualidade da edição. Ergo, a culpa pelos textos descuidados não é apenas do vil metal. cqd.

Termino citando Anthony Pym, exemplo de acadêmico-profissional bem-sucedido nos dois universos, cujos textos eu sempre incluo em minhas aulas de tradução: "The most important part of a translation job is getting paid."

* * *

Notas finais: Quando a matéria do JB foi publicada, havia 10 finalistas concorrendo ao Prêmio Jabuti. No momento da publicação desta nota há 3, entre eles Mamede Jarouche e Bernardina Pinheiro. A tradução de Rubens Figueiredo foi desclassificada.
Pelo que pude apurar, nenhuma tradução de Millôr Fernandes esteve entre as 10 finalistas de nenhuma edição do Prêmio Jabuti.
Não estou tirando nenhuma conclusão ;o)

* * *

Atualização:

Mamede Jarouche pediu a publicação de uma resposta a esta discussão numa comunidade de tradutores do Orkut (o debate também ocorreu em listas de discussão de tradutores). Como a resposta dele é pública e muito valiosa para as questões discutidas aqui, acredito que eu também possa reproduzi-la aqui.

Não me lembro dessa entrevista. Faz um bom tempo que não falo com ninguém do Jornal do Brasil, logo não sei de que contexto exatamente foram tiradas as minhas palavras. Jamais, em tempo algum, eu me atreveria a me pronunciar de maneira depreciativamente genérica, ou genericamente depreciativa, contra os tradutores profissionais, de cujo labor, aliás, dependo muitíssimas vezes. Não acho, de modo algum, que por não ser profissional, e logo poder me dar ao luxo quase depravado de traduzir por prazer e produzir uma obra melhor. Isso é rematada tolice. Ocorre-me, talvez, que eu tenha dito o seguinte: como, ao contrário dos tradutores profissionais, não trabalhei premido por prazos, e como estava, além da tradução, pesquisando o assunto, pude colocar umas notas a mais que talvez um tradutor profissional não tivesse tempo de fazer. Veja bem, estou tentando adivinhar qual o contexto que levou à alteração das minhas palavras. Não posso garantir que tenha sido exatamente isso; o que posso garantir é que jamais, em tempo algum, eu atacaria os tradutores profssionais. Isso é loucura. Certamente não sou nenhum exemplo de sanidade, mas não chegaria a ponto de fazer uma sandice dessas, desqualificar o trabalho de toda uma categoria profissional. Por favor, deixem-me fora dessa encrenca. Se for o caso, escreverei ao próprio Jornal do Brasil. Vejam aí o que é melhor. Só não quero que esse mal-entendido permaneça.
grande abraço,
Mamede

Portanto, vale a pena reforçar: o desserviço é da matéria publicada no jornal, mas não necessariamente dos tradutores nela retratados. É sempre bom ler reportagens com uma pitada de sal.

7 comentários:

Jim disse...

Olá!
Legal o seu blogger.
Também tenho um sobre tradução, talvez já tenha dado uma olhada nele alguma vez.
http://www.traducao.blogspot.com

:)

Carolina Alfaro de Carvalho disse...

Oi, Jim.

Não conhecia seu blog. Vou adicionar à minha lista de links.

Um abraço.

Anônimo disse...

ótimas colocações, Carol.
Beijo
Adriana
Adriana Caraccio Morgan

Anônimo disse...

Carol,
Fui eu quem escrevi a matéria e entrevistei Mamede Jarouche para a mesma, por ocasião do prêmio Jabuti. Não deturpei as palavras dele e é muito triste que não me seja dado sequer um voto de confiança. Ele deveria ter escrito uma carta ao jornal se discordou do que foi publicado. Mas prezo muito as palavras de meus entrevistados e não mudaria uma linha do que ele disse. Não quero entrar em discussão, só gostaria de deixar aqui registrado.

Carolina Alfaro de Carvalho disse...

Bianca,
Assim como considero valioso o esclarecimento de Mamede, também acho importante e respeito o seu registro. Nada como dialogar diretamente com os protagonistas e autores da matéria em debate.
Eu não tenho como entrar no mérito de quem disse o que e se foi deturpado ou não. Dei minha opinião como leitora e como tradutora, e continuo observando e tentando tirar minhas conclusões com esta conversa.
Acho que todos temos a ganhar com um debate limpo e franco, conhecendo melhor o ponto de vista de cada um.
Um abraço,
Carol.

BeMedina disse...

É uma discussão difícil, né? Fui jornalista, sei como é isso. A gente entrevista, grava, transcreve e depois redige a matéria. Às vezes acha que foi fidelíssima; mas nem sempre o entrevistado concorda. Já aconteceu comigo e acontecerá com todos os jornalistas alguma vez na vida. Muitas vezes o que dizemos "en passant" adquire nova importância quando a fala é transcrita e o texto lido...

Como o próprio Mamede afirma não lembrar-se da entrevista, creio que não há como chegar a uma conclusão.

O Leitor disse...

Existe ainda um outro componente rançoso nessa história, que é a dicotomia burra entre prática e teoria, entre acadêmicos e profissionais do mercado.
Não concordo que a matéria seja tão detratora dos tradutores profissionais, mas acho que falta o nosso ponto de vista. Nada justifica um trabalho mal feito, mas há que se levar em conta as condições usuais dos trabalhos de tradução, com prazos apertadíssimos e remuneração igualmente espremida. Mas, essa realidade não é muito diferente também dos prazos e remuneração dos jornalistas.
O mundo ideal seria a ausência da pressão dos prazos (como o Mamede conseguiu para o seu projeto, mérito dele) e um pagamento a peso de ouro para todo mundo. Mas, isso, obviamente seria comercialmente inviável. Temos que lembrar que são as editoras, empresas comerciais, que viabilizam o trabalho de tradutores e autores. O ideal mesmo é uma cadeia produtiva em que todas as partes se respeitem e valorizem. Eu acredito que exista lugar ao sol para todos e que haverá cada vez mais. Acredito muito mais numa expansão do mercado editorial e das traduções do que no contrário. Mas chega de digressão, tenho que ir cumprir meus prazos agora. Valeu, Carol, é importante jogar as coisas no ventilador e dar voz a todas as partes. Abs.