6 de junho de 2014

Tradução e tênis

Além de línguas e tradução, uma das atividades que mais ocupam meu tempo é o tênis -- o esporte.

Comecei a jogar aos 7 anos e competi dos 10 aos 17. A partir dos 14 eu treinava 4 horas por dia, mas parei aos 17 quando percebi que não teria mais chance de me tornar profissional, sendo que desde os 15 ou 16 eu já estava praticamente obcecada em ser tradutora. No meu ano livre entre a formatura da escola e o início da faculdade, com 17-18 anos, dei aulas de tênis em dois clubes. Jogo regularmente até hoje e, como ao longo de toda a vida, eu me integrei à nova cidade (a terceira em que eu moro) e fiz vários bons amigos por meio do tênis. Sempre convivi com amantes desse esporte, fossem amadores ou profissionais.

Além disso, é claro, o gosto pelo estudo de línguas, gramática, literatura e tradução, além de há mais de 20 anos ser estudante ou professora de tradução (às vezes as duas coisas ao mesmo tempo), define grande parte de quem eu sou, como penso, com quem me relaciono e a que dedico a maior parte do meu tempo.

Um dia desses, batendo bola, minha cabeça começou a "viajar" e tecer paralelos entre as duas atividades. Fiquei maravilhada de constatar quanta coisa elas têm em comum. Então aqui vai um pequeno exercício de reflexão: qualquer um dos itens abaixo são o que vejo e sinto tanto com relação ao campo da tradução quanto ao tênis.
  • É uma atividade notoriamente solitária, o que não quer dizer que tudo dependa somente de você.
  • Quem vê essa atividade de fora, sem conhecê-la, pensa que é algo puramente mecânico.
  • É preciso treinar a vida toda; não existe um momento em que não há mais necessidade de praticar e se aperfeiçoar. No começo é apenas para conseguir fazer o básico, mas, quanto mais alto o nível a que você chega, mais importante é treinar com regularidade para buscar estender seus próprios limites.
  • Sempre dá para melhorar.
  • É 99% ralação e 1% inspiração.
  • Se, para quem olha de fora, o que a pessoa faz parece fácil e natural, pode ter certeza de que exigiu um esforço muitíssimo maior do que se pode imaginar.
  • É preciso treinar muito, durante anos e anos, para, quando nos depararmos com algum daqueles momentos cruciais da carreira, algum desafio imenso que nos marcará pelo resto da vida, sabermos aproveitar a oportunidade.
  • Existe sorte. Mas ela não pode fazer parte da nossa estratégia. 
  • Há muita margem para discussão de regras e questionamentos. Mas dentro é dentro, e fora é fora.
  • Temos que conseguir pegar gosto -- ou ao menos aceitar e tirar satisfação -- da prática em todos os aspectos (mesmo aqueles de que a gente não gosta), do cansaço, da repetição, da frustração, da dor. Os momentos de vitórias memoráveis e reconhecimento são raros e estão diretamente relacionados a esse esforço contínuo.
  • O erro faz parte e acontece com frequência. Simplesmente não existe a possibilidade de não errar. É preciso aceitar que isso vai acontecer e saber lidar com a presença de erros de modo a não comprometer o resultado final, sua postura e autoconfiança e o prazer de continuar se dedicando àquela atividade.
  • A derrota também faz parte. É preciso saber usá-la como fonte de motivação para melhorar. Mas, se você repetidamente não consegue ganhar, há algo muito errado com o que está fazendo, e precisa reconhecer esse fato e buscar ajuda.
  • O único jeito de melhorar é nos medirmos sempre com quem é melhor do que nós.
  • É importante termos um modelo (ou alguns) daquilo que gostaríamos de ser. E é importante saber por que escolhemos justamente esse modelo.
  • Derrotar ou apontar erros de quem é tecnicamente inferior não nos torna melhor em absolutamente nada.
  • Ao cometer um erro grave, ficar remoendo ou apresentando justificativas só piora a situação. A única solução é aprender com ele imediatamente e dar um jeito de acertar da próxima vez.
  • A sensação de orgulho ao vencer é muito forte, pois lutamos sozinhos e o mérito é fortemente individual. Mas quem conquista uma vitória importante sempre tem uma enorme quantidade de gente para agradecer por ter chegado lá.
  • É preciso ter uma combinação muito especial de ambição e humildade, sempre.
  • Não se fica parado lugar. Parar é retroceder. 
  • Não se pode descansar nos louros enquanto a carreira não chegou ao fim. Isso é um pecado mortal.
  • Poucas coisas revelam nossa verdadeira ética quanto uma derrota dolorosa. Ou mesmo a possibilidade de derrota.
  • Mesmo a mais correta das pessoas tenta distorcer uma regra a seu favor ou tirar vantagem de vez em quando. Mas nada é mais difícil do que fazer o que sabemos ser correto quando somos roubados ou prejudicados de má fé. E isso acontece com frequência.
  • Fatores externos, sejam naturais ou humanos, interferem o tempo todo. Ninguém está imune a eles. Mas quem é realmente sério jamais usa esses fatores como justificativa para suas falhas.
  • É perfeitamente possível ser autodidata, mas a imensa maioria dos autodidatas terá vícios ou carências técnicas visíveis se nunca parar e se aperfeiçoar formalmente.
  • Salvo raras e honrosas exceções, é possível identificar autodidatas, amadores ou praticantes ocasionais em questão de segundos.
  • "Ter paixão" pela atividade e ser um profissional -- que faz daquela atividade a carreira de uma vida -- são coisas completamente diferentes. Ser profissional e não perder a paixão por algo que requer tamanho esforço e dedicação é que é o grande desafio.
  • Há muito espaço para ótimos profissionais que nunca vão estar no topo ou entrar para a história. Não há vergonha alguma e é possível ter uma carreira muito digna e produtiva em níveis intermediários. O grau de esforço e dedicação necessário continua sendo exatamente o mesmo.
  • Há quem tenha talento inato para a coisa, e isso é perceptível, mesmo que a gente não saiba exatamente o que é.
  • Ajudar alguém a melhorar nos faz melhorar ainda mais.
  • Nosso adversário é nosso colega. Sem ele, nós não somos nada, não temos mérito algum. Nosso inimigo de hoje é seu parceiro de amanhã, ou vice-versa.
  • É fundamental respeitar o adversário e saber reconhecer seus méritos.
  • É crucial saber separar profissão de relacionamento pessoal, apesar de essas duas dimensões se misturarem constantemente.
  • Não nos dedicamos a essa atividade porque esperamos reconhecimento. Nos dedicamos a essa atividade porque é parte de quem somos e queremos realizá-la com qualidade.
  • É uma viagem de autoconhecimento. Precisamos encarar nossos defeitos e pontos fracos, assim como descobrir e saber aproveitar nossos talentos.
  • Temos que saber estudar sós, trabalhar sós, nos defendermos sós, superarmos desafios sós.
  • Quem nos observa de fora vai nos julgar, às vezes com base em detalhes que mal percebemos. Faz parte.
  • Dizer que se é bom naquilo não significa nada. Tem que mostrar.
  • Uma vitória bonita de um de orgulho enche a todos.
  • Quem diz que não sente pressão quando outras pessoas estão assistindo ou seu nome vai ficar gravado está mentindo descaradamente. O grande mérito está em justamente não deixar o desempenho cair demais sob pressão.
  • Quem pensa que investir constantemente em instrumental de qualidade não faz diferença no desempenho não entende nada. Quem acha que só o instrumental resolve tudo também não.
  • Quanto melhor se é, mais diferença faz uma fração de segundo, um centímetro, um grau.
  • Não é algo que a gente faz. É algo que se é. É um estilo de vida, uma forma de pensar. Não só da pessoa, mas da família toda.
  • É uma atividade que transforma a nossa forma de encarar a vida e que influencia tudo o que fazemos, mesmo que sejam coisas totalmente desvinculadas da atividade em si.
  • Quando bem executada, chega a comover. Mas só para quem sabe apreciar de verdade.
  • É ciência. É arte. É malabarismo. É dança.
E tenho certeza de que não termina aqui. Provavelmente eu ainda volte para acrescentar itens na lista...
(Aliás, já acrescentei.)

Um adendo: eu escrevi sobre tênis porque, claro, é o esporte que pratiquei a vida toda e mais admiro. Tenho medo de generalizar e nem é esse o objetivo. Mas é claro que muito disto valeria também para diversos outros esportes individuais, como squash, natação, golfe ou atletismo.

7 comentários:

Unknown disse...

Oi, Carol,

Concordo com tudo. Só fico me perguntando se - e quando - a carreira chega ao fim. Pelo que entendi do seu post, só quando a gente deixar de querer aprender mais. Espero que esse dia demore bastante a chegar, porque aí, não é só a carreira que acaba...

Carolina Alfaro de Carvalho disse...

É claro que tanto um tenista quanto um tradutor se aposenta também. Mas o fim do cotidiano de trabalho puxado não significa deixar de ser aquilo que você é. A maioria dos tenistas e a maioria dos tradutores que encerra a carreira oficial continua se relacionando àquela atividade até o fim da vida, de diversas maneiras. Mas concordo: deixar de aprender significa encerrar a carreira prematuramente.

Unknown disse...

Não sou tenista, nem esportista, mas quase tudo que você escreveu se aplica também à prática musical com que estou envolvida, pelo piano e pelo canto, desde sempre!

Carolina Alfaro de Carvalho disse...

Ah, eu já pensei em muitos paralelos com músicos, também (inclusive há um texto anterior do blog em que faço um paralelo com cantores profissionais). Só que não tenho experiência nem conhecimento de música suficientemente aprofundados para escrever só sobre isso.
:)

Unknown disse...

Lembro de ter lido que Borges teria dito que se comovia às lágrimas ao ver um tradutor em atividade. Quanta reflexão envolve uma e outra atividades, não pensaria ele ao ler esse belo artigo. Cristalino.

Carolina Alfaro de Carvalho disse...

Obrigada!

Simone disse...

Amei quando li:

"Não é algo que a gente faz. É algo que se é. É um estilo de vida, uma forma de pensar. Não só da pessoa, mas da família toda."

Excelente postagem, Carol!
Adorei seu texto.